Deslocados do seu destino imaginário, os argentinos votaram em quem disse acreditar que receber conselhos de “cachorros mortos” era uma originalidade sadia e que a Argentina fora “a grande potência mundial no Século passado”. A Argentina morre e o surrealismo pós-moderno se recria numa nação em que o seu principal líder do Século passado- Juan Domingo Perón – comandava, à sua direita, a Triple A, que liderava assassinatos em massa e, à sua esquerda, orientava as suas frações mais fiéis que entregassem seus lutadores para os cemitérios sem endereço, com a indicação de Izabelita – como sua segunda – sabendo que ia morrer em breve. O peronismo foi a formatação caudilhesca de caráter social democrático que levou a Argentina para um patamar social superior aos principais países da América, especialmente favorecida pelos eventos da 2a, Grande Guerra.
Se Jorge Luis Borges vivesse e escrevesse, depois de Milei, poderia dizer deste o que seu discípulo e parceiro Adolfo Bioy Casares colocou na boca do seu personagem, fugitivo na novela “Invenção de Morel”, depois que ele – o fugitivo – aportou na ilha inventada pelo autor. Na narrativa, os personagens da ilha – observados pelo fugitivo – são apenas projeções: imagens provenientes de uma mecânica destinada a criar ilusões. E ele, o fugitivo, é um paranóico que pensa que, quando “intelectos menos toscos se ocuparem da sua invenção, o homem escolherá um lugar apartado, agradável, reunirá as pessoas mais caras e perdurará num íntimo paraíso”. Trata-se, na imaginação do fugitivo, de uma sociedade de grupos separados, cada um vivendo sua socialidade e formando um todo, cuja relação humana consentida dispensa qualquer vínculo com quem está fora da convenção dos grupos isolados.
O fugitivo, então encantado por uma mulher fictícia, que é também uma mera “projeção” da máquina de ilusões de Morel, sofre com paranóias persecutórias e chega a desconfiar que a própria mulher amada é inexistente. Como o cão-parapsicólogo morto, que aconselha Milei, a falsa visão do fugitivo é uma tentativa de ancoragem na vida real, que lhe dá forças para persistir e assim não rejeitar totalmente aquilo que eventualmente pode ser uma miragem, mas também pode ser real. A social democracia “envolve a responsabilidade estatal no sentido de garantir o bem-estar básico dos cidadãos” e a visão ultraliberal ou neoliberal – dependendo do estágio que se encontram as reformas – diz que a anarquia do mercado é a situação que gera homens e mulheres fortes para construírem e desfrutarem o básico para uma vida decente e que o Estado só atrapalha: é uma máquina de corrupção e de burocracia para proteger os fracos e preguiçosos.
O apelo de líderes fascistas ou protofascistas, mais (ou menos) doentios é mais forte para mobilizar as pessoas, seguramente, do que as propostas social-democratas em decadência política. Aquele apelo é mais forte porque a possibilidade está na imediatidade potencial de resposta, que o autoritarismo oferece a cada sujeito: os pobres e os miseráveis são iludidos de que podem entrar rapidamente no mundo do consumo, se a corrupção terminar, os médios são convocados a compartilhar num futuro próximo com os ricos pois todos podem ser empreendedores – o que “vale é o teu esforço” – e os ricos apoiam qualquer aventureiro que lhes prometa “baixar impostos” e bloquear as manifestações – sindicais ou políticas – que atrapalhem os seus negócios. O valor da democracia é o valor da liberdade e da remota possibilidade da igualdade, mas suas estruturas de poder no Estado não se renovaram no essencial nos 200 anos da sua duração.
Cito três aspectos da vida cotidiana que compõem a crise política da democracia moderna, que geram as condições favoráveis para o ascenso do fascismo e para a precarização da democracia política: a fragilidade da segurança pública que implica numa redução da qualidade de vida das massas populares e que torna a vida dos jovens mais “enturmada”, logo, uma vida de guetificação cercada pela cultura deformante das redes “profundas” e dos assédios do crime organizado, que os separam dos bens culturais e educacionais mais universais e que fundem ricos e pobres num mesmo universo mercantil ilusório; a segregação e a gentrificação territorial, nas grandes regiões metropolitanas, onde porejam as ofertas criminosas para, rapidamente, os jovens “vencerem na vida” e falsamente compartilharem do consumismo anárquico do capitalismo desenfreado, dentro e fora da lei; a concentração de renda e a sua consequência na subjetividade popular pelo contraste brutal entre ricos e pobres.
A Professora Celi Pinto no seu belo livro “Tempo e Memórias – Vida de Mulheres”, bem menciona Paul Ricoeur “que nos fala de um tempo anônimo, que está a meio caminho entre o tempo privado e o tempo público”, cuja separação e integração na memória formam uma totalidade viva. Elas criam no indivíduo o seu modo particular de viver este dois tempos num só: pela memória. Creio que devemos nos perguntar, se queremos voltar a impulsionar o mundo na direção da Igualdade, da República e da Liberdade, se o tempo dominante deste ciclo histórico não criou na memória – não na coletiva mas na memória dos indivíduos isolados – um túmulo para o tempo público.
Isso pode ter ocorrido, já que todo o tempo de vida, hoje, é a sublimação histérica do presente, voltada para a única realidade universal: o mercado pulsante e o consumo manipulado. Se isso for verdade, a luta será mais penosa do que se pensa, já que o fugitivo de Bioy Casares – junto com os cães conselheiros de Milei – terão vencido: e todos para todos serão espectros ilusórios eternizados numa ilha de Morel.
(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.