Brasil - Núcleo dirigente e futuro republicano

Sottotitolo: 
Um mundo sem utopias - o mundo do 'mercado perfeito' - só sobrevive por causa da histeria consumista. Não ter utopias é tão perigoso quanto tê-las.

 Estamos atravessando um período histórico no qual os núcleos dirigentes institucionalizados nos partidos, por motivos diferentes em cada organização partidária e região, estão perdendo a capacidade de direção das suas bases internas aos partidos e, igualmente, diminuem sua capacidade de orientar os grupos sociais que lhe correspondem. E não se trata de inabilidade ou abdicação espontânea das direções. É um fenômeno político e social originário, em regra, da superação da forma-partido, de caráter tradicional, que não mais corresponde à reestruturação da sociedade de classes atual, nem às formas através das quais se desenvolve a vida comum.
 
Os partidos, em geral, também nas questões políticas imediatas, não conseguem mais abranger as distintas complexidades da luta de classes, que transcenderam em cada disputa localizada o espaço nacional e tornou-se um confronto global. Os partidos são da época das “cartas” e dos “manifestos-programas” e a vida real (neste limiar do novo milênio) é época das redes, das relações virtuais, da militância de preferência sem exposição do corpo - a não ser como estética política - , da descartabilidade das ideias e do fascismo societal.
 
Este fenômeno de esvaziamento do poder dos partidos na conformação política do presente, que repercute de maneira específica em cada território, é composto por alguns elementos recorrentes, surgidos com as mudanças nos padrões de acumulação do capital, com as novas formas de produção e as novas exigências da produtividade na competição global. A conexão “partido-classe” debilitou-se muito e a uniformização ideológico-cultural, promovida artificialmente pela mídia oligopólica (com valores e conceitos “pausterizados”) bloqueia a possibilidade de uma influência significativa, tanto da representação tradicional, como da produção de políticas anti-sistêmicas, na base, criadas pela imaginação utópica.
 
Com as mudanças nos padrões de reprodução do sistema do capital, mudaram também as formas pelas quais se processa a formação da opinião e a própria luta política. Refiro-me aos meios tecnológicos de produção da comunicação de massas, apropriados pelas elites financeiras e empresariais em cada país, pelos quais se forma a consciência crítica na sociedade, através da qual se constitui o pensamento hegemônico.
 
Os temas mais universais da disputa em curso, hoje, são os seguintes: austeridade, quem frui, quem paga; quem goza e quem sofre. Democracia, quem manipula as instituições e forma opinião, qual o significado da democracia republicana, fechada ou aberta, ao socialismo e à social-democracia. República, quais os seus vínculos de princípio com a democracia e qual o lugar das classes médias e dos pobres no seu ventre. Estes são os temas sobre os quais os grupos políticos, as nações, os setores sociais dominantes, os trabalhadores de todas as esferas da produção, devem apresentar alternativas ao projeto neoliberal, em escala nacional e global. Os temas ligam as questões que enfrentam os estados nacionais, para vincularem-se com um mínimo de soberania a uma ordem global controlada pelo capital financeiro. A Grécia que o diga.
 
Isaiah Berlin dizia, tanto para combater o comunismo como o fascismo - como liberal consequente que era - que "as utopias são perigosas". Parece que a história vem demonstrando que ter utopias é tão perigoso como não tê-las. A sua frase, aparentemente genial, como opção liberal que influiu na inteligência conservadora da época, perdeu a sua autoridade doutrinária: um mundo sem utopias, sem ideais de futuro, um mundo do “mercado perfeito”, não é só uma fraude conceitual, mas é também uma tragédia histórica. Ele só sobrevive com guerras de ocupação e impulsos renovados à histeria consumista.
 
Sejam elas religiosas, políticas, raciais - ou todas sintetizadas num projeto de autoridade para impô-las -  as utopias podem ser “perigosas”. Ou não. Podem também ser estimulantes de uma resistência humanista concreta, que se realiza em algum tempo histórico, opondo-se a outras utopias e a ensaios de barbárie terminal, como foi, aliás, a utopia racial do nazismo. Ela foi barrada, no seu limite mais brutal, principalmente pela utopia “soviética”. As utopias, dependendo do que os homens, nas instituições e nos partidos, nas organizações políticas e no Estado, fazem delas, tanto podem ser perigosas como generosas. Viver sem utopias é viver uma vida sem riqueza de sentido, com a mediocridade do cotidiano imposto pela cultura do capital. O Brasil, no momento, vive a incoerência do impulso da utopia republicana democrática, cercada pela subsunção do Estado na escravidão da dívida.
 
Pode-se dizer que a Democracia - como regime político que compõe maiorias dirigentes legítimas no Estado para governar - e a  República – como cultura e forma institucional para realizá-la são "utopias". São utopias porque a sua realidade não coincide com as suas promessas e as suas promessas, de igualdade e liberdade, têm para a sua realização histórica – em qualquer hipótese - um enorme espaço de indeterminação. Esta indeterminação pode abrigar, por exemplo, contradições como a desta pergunta: na República e na Democracia a centralidade do “bom governo” é o bom fluxo de mercadorias ou o “bom governo” é a satisfação das necessidades humanas mais elementares”? Ou ambos?
 
No nosso país é quase unânime a defesa da Democracia e da República, mas não há acordo entre os partidos, grupos políticos e instituições sobre as respostas a indagações como estas. As distintas correntes e facções políticas gostariam de moldá-las segundo determinadas finalidades, compondo-as com maior ou menor proximidade com as necessidades das suas regiões, com as demandas das classes a que pertencem e, sobretudo, querem-nas destinadas a organizar a produção, a cultura, as relações de família, o consumo e a distribuição de riqueza, de acordo com a sua visão particular de mundo.
 
O debate sobre os rumos de uma nação republicana e democrática é um debate, portanto, sobre o conteúdo histórico que vai adequar, nas próximas décadas, a utopia democrática e republicana às promessas das suas doutrinas originárias. São promessas sempre inconclusas e buscadas, mas, de qualquer forma, muito mais concretas e mais próximas do seu ideal do que, por exemplo, esteve o socialismo real da utopia comunista, ou a Alemanha da utopia maligna do racismo nazista.
 
Esta conjuntura histórica, de uma parte, é um "atraso", em relação à utopia comunista da igualdade social plena, porque nem sempre os métodos democráticos promovem as reformas mais rápidas que interessam à maioria social a que se destinam. Mas a situação histórica também é um avanço civilizatório, em relação às lutas socialistas do Século XX, porque (ou por “desvio” ou por convicção dos seus dirigentes) a experiência republicana do Iluminismo não transmitiu, para a nova ordem socialista, os seus melhores legados. As revoluções socialistas, com as suas políticas de igualdade com racionamento e gestão do bem comum sem democracia política, inclusive para as classes revolucionárias, concorreram para que a ideia socialista fosse subsumida na burocracia, a mesma que, mais tarde, vai herdar o estado privatizado.
 
Assim, na utopia socialista, as repúblicas soviéticas tornaram-se rituais de afirmação do poder da burocracia sem democracia política, mesmo fora dos períodos de exceção. Ao mesmo tempo em que a opacidade do Estado bloqueou um mínimo de controle social, sobre o próprio Partido dirigente e sobre o Estado. Por isso o “núcleo dirigente” do Estado foi o mesmo "núcleo dirigente" do Partido, que se estatizou, com a sociedade civil sendo eliminada como esfera juridicamente autônoma da luta política e da produção de ideias. A sociedade civil socialista, sem mercado e sem partidos, não constituiu, portanto,  canais efetivos de acesso à crítica ou à formação livre da opinião, para disputar, ou mesmo influir, sobre os rumos das coisas e dos bens públicos.
 
A utopia republicana democrática, dentro do sistema do capital, tem outros bloqueios, com outras características, não menos danosas e perversas, comparativamente àquelas montadas pelas classes sociais e seus grupos políticos dirigentes, tutelados pelo capital financeiro.
 
A liberdade concreta, na esfera pública em que é produzida a opinião política que pode se contrapor ao projeto neoliberal, é paulatinamente esvaziada. O oligopólio midiático capturou este espaço, hegemonizou e dá homogeneidade à formação da opinião. Ao mesmo tempo, o oligopólio orientou, através de instituições da sociedade civil, a formação de um núcleo dirigente, que tanto está dentro do Estado - na sua alta burocracia e em muitos dos seus gestores políticos - como está fora do Estado, utilizando os partidos de forma subsidiária. Este grupo dirigente se organiza, nas altas esferas das classes privilegiadas pelo sistema de poder do capital financeiro e atravessa partes, em proporções maiores ou menores, de todos os partidos. O capital financeiro criou um sistema de poder paraestatal e intraestatal, por fora dos canais institucionais, tanto políticos como econômicos, para relativizar a Democracia e colocar a República a seu serviço.
 
Organizam-se, assim, as pré-condições para um novo tipo de totalitarismo, que dispensa o uso intensivo de força bruta. Ele controla a formação da agenda e dos juízos políticos sobre ela, ao mesmo tempo em que estimula grupos de ataque neo, ou para-fascistas, que se movem como “forças de reserva”, contra quem se opõe a este núcleo dirigente, aparentemente invisível. O fascismo societal, como diz Boaventura de Sousa Santos, precede a estrutura formal do partido fascista novo tipo, cujo núcleo de poder já está conformado, tanto no interior da grande mídia, como na relação com os mais medíocres políticos da direita tradicional.
 
Faço estas observações especialmente centrado no que ocorre no Brasil. Os grupos, classes sociais, blocos regionais de poder, representações parlamentares no Brasil, que se opõem a este processo, estão sem um “núcleo dirigente” visível, para resistir ao avanço do projeto autoritário, que tem núcleo dirigente real, mas aparentemente invisível. A ausência de um centro dirigente unitário da esquerda, colabora para que a cidadania careça, neste momento, de uma identidade democrática comum, capaz de participar de forma aberta, massiva e argumentativa do debate político. E também de optar por uma agenda fora da agenda manipulatória, que a grande mídia oligopolista está instituindo.
 
Os casos da Petrobrás e da Reforma Política são emblemáticos. É pacífico que teve e tem corrupção na Petrobrás e que quem cometeu os crimes deve ser duramente punido e, ainda, que noticiar sobre tudo isso é importante. Mas o que ocorre, hoje, é a utilização deste caso de corrupção, tanto para fortalecer a irracionalidade no debate político (ou mesmo fazê-lo com uma virulência verbal inédita), como para possibilitar que a investigação e o processo tornem-se secundários, e o principal seja o desmantelamento da ordem política.
 
Esta ordem está se tornando tributária da instância judicial, sucumbe e se avilta, tornando-se, na verdade, apenas uma instância que repassa os grandes temas da nação às instância que, não apenas judicializam a política mas, na verdade, absorvem e anulam a política. A reforma política, por exemplo, que pode ser o maior instrumento de combate a qualquer tipo de corrupção, saiu completamente da agenda nacional. Por não desejada pela mídia oligopólica, a reforma fica paralisada no Poder Judiciário, que, assim, sequestra o tema mais relevante da Democracia.
 
Através de vazamentos ilegais, informações selecionadas, incriminações em abstrato, feitas pela imprensa tradicional, de toda uma comunidade política, a direita neoliberal ou simplesmente conservadora, aposta na radicalização da crise e na asfixia da democracia: reforma política, democratização da mídia, imposto sobre as grandes fortunas, participação cidadã na elaboração das políticas públicas, cooperação interdependente na cena pública global, passam a ser temas secundários, quando não se tornam temas malditos.
 
Assim como ocorreu uma mudança significativa no padrão de acumulação no sistema do capital, com efeitos que se "espalharam" por todos os territórios e adquiriam as cores específicas locais   (p.ex. os trabalhadores franceses tem mais o que perder que os brasileiros, mas lá eles têm a exploração dos imigrantes como um forte componente desestabilizador do pacto democrático),  também o processo político na democracia política ocidental vem sofrendo alterações significativas.
 
Na sociedade mais fragmentada e desestruturada, em comparação com a sociedade industrial prevalecente até os anos 70, os sujeitos políticos tem uma capacidade de pressão e negociação menor, comparativamente à sociedade capitalista tradicional, na qual os sujeitos eram mais visíveis. Ali, era mais clara a correspondência política, à esquerda e à direita,  nos partidos de representação ou nos movimentos diretos das classes sociais. Hoje isso mudou bastante. Os partidos do campo progressista, social-democrata, comunista ou socialista,  não conseguem estabelecer “bases de classe”, que não sejam fortemente corporativas. Bases que sejam ancoradas em demandas com mais universalidade e abrangência social, como a ideia do socialismo ou da luta pela democracia. Ambas já moveram milhões, e o pacto-social democrata ou nacional-popular, que se fortalecia nestas lutas, lutava e  "acordava" em nome de milhões.
 
No campo das classes superiores, tuteladas pelo capital financeiro, a fragmentação não é menor. A agenda dos seus partidos foi, de uma parte, “reformada”, em torno do sistema de poder do capital financeiro, para "ajustar" o Estado e prepará-lo para um novo ciclo de desenvolvimento, mais excludente e elitizado. Antonio Gramsci, num dos seus textos lapidares - em que analisava as premissas que criaram condições para o acesso ao poder do partido fascista na Itália - flagrou, num período histórico diferente, aquilo que de certa forma vivemos hoje em nosso país: “Esta ordem de fenômenos liga-se a uma das questões mais importantes concernentes ao partido político, isto é, à capacidade do partido de reagir contra o espírito consuetudinário, contra as tendências a se mumificar e tornar anacrônico. Os partidos nascem e se constituem como organização para dirigir a situação em momentos historicamente vitais para as suas classes; mas nem sempre eles sabem adaptar-se às novas tarefas e às novas épocas, nem sempre sabem desenvolver-se de acordo com o desenvolvimento do conjunto das relações de força (e, portanto, a posição relativa de suas classes) no país em questão ou no campo internacional”.
 
Fiori observa, em artigo recente, ainda não editado, este fenômeno como elemento comum da própria política imperial, que inspira a política mesma do sistema do capital, na sua fase de hegemonia, muito próxima de ser “absoluta”: “(...) ii) de que acabou-se a distinção clássica entre realistas e idealistas dentro do establishment americano e hoje todos os partidos e governantes estão obrigados a seguir uma mesma estratégia, que alguns chamam de ‘wilsonismo realista’. (...)  iv) e por fim, quase nenhum destes analistas acredita mais na validez universal da democracia, nem na possibilidade dos EUA exercerem no futuro uma liderança mundial ‘hegemônica e benevolente’. Nesse momento, a democracia passou para um segundo plano, como instrumento de promoção e defesa dos interesses estratégicos americanos”.
 
As ofensas criminosas à Presidente Dilma, no famoso episódio da Copa, em São Paulo; o incidente que ocorreu no Hospital Albert Einstein, em São Paulo (24 de fevereiro), quando o ex-Ministro Guido Mantega acompanhava sua mulher num penoso procedimento de tratamento de câncer; as provocações montadas por grupos fascistas ligados à oposição de direita, no evento convocado pela Fupe, em defesa da Petrobrás; os incidentes de rua, em bares e cafés de zonas nobres nas cidades mais ricas, mostram que há uma tendência no país, promovida pelo núcleo dirigente da direita liberal e neoliberal, que aposta na solução de força e na violência, para resolver a crise.
 
Tudo indica um caminho perigoso que está trilhando a democracia brasileira, face a campanha que a grande mídia realiza, de maneira consciente e sistemática, tanto para retirar o PT e a esquerda brasileira do imaginário democrático do povo, como para enfraquecer o “centro” democrático e o que resta da centro-direita republicana.
 
Não se trata de criticar uma campanha para combater politicamente um partido, o que é procedimento normal numa disputa democrática. Trata-se de combater a criminalização, em abstrato, de todos os indivíduos que compõe uma comunidade política, manchando-os, indistintamente, com a qualificação de “corruptos”. Não é nova esta estratégia. Talvez a história do “Müncher Post” - um jornal moderado da socialdemocracia alemã, permanentemente fustigado pela violência nazista -   revele que estamos perante um fenômeno antigo, com roupas novas, na movimentação da reação política. Similar àquele período histórico, de reação contra o socialismo, mas, agora, como reação à Democracia e a República. (“A cozinha venenosa – um jornal contra Hitler”, Silvia Bittencourt, Ed. Três Estrelas, 2013)
 
Nos momentos estruturais de criminalização da política, em que se aniquila o ritual da disputa democrática e os contendores deixam de se reconhecer como legítimos  - tanto para lutar com ideias como para acordar e concertar - há um processo inverso, de politização da criminalidade. Esta, tanto é concretizada através de ações de grupos organizados para a violência, como através de manifestações aparentemente espontâneas   - individuais ou de grupos informais -   que ingressam no terreno da política já pela via dos delitos comuns  e o fazem por agressões simbólicas, físicas ou não, gritos difamatórios e ações injuriosas.
 
Finalmente, as ações criminosas, instaladas das quadrilhas marginais dos grandes centros urbanos, dão também um passo na politização da violência: incendeiam ônibus, depredam negócios privados e prédios públicos, misturam as reações legítimas do povo às repressões policiais sem controle, com a banalização da violência física. Conectam  a destruição de bens públicos e privados, com a inconformidade popular e  fazem a alegria de obscuros grupos ultraesquerdistas ou de extrema direita, abrigados em máscaras indecifráveis.
 
O clima de conflito agudo que lembra uma guerra civil passa, então, a ser constituído, tanto pela ineficiência do funcionamento das instituições, como pela fragilidade da resistência organizada da cidadania. Nestes casos, a crises tendem a se resolver pela guerra civil, por um golpe militar ou pela prostração total de uma das partes em confronto.  Ainda não estamos próximos disso, mas se a esquerda, de forma plural, não constituir um núcleo dirigente visível, que proponha uma linha minimamente unitária, não só para a defesa da Democracia e da República, mas também para uma drástica redução das  desigualdades sociais, que estão na base de todos estes conflitos, a decadência pode prosperar e, no horizonte, a guerra civil não declarada que vivemos, pode se transformar em anomia e fascismo institucional.
 
A carta de Antonio Gramsci (14 out. 1926), ao Comitê Central do PC da URSS, mostra que, mesmo dentro da construção do socialismo real, a questão da “função dirigente”   - exercida por um “núcleo dirigente” -  pode se tornar questão axial, para a solução de uma crise: “Mas vocês estão hoje destruindo o que construíram; estão se degradando e correm o risco de anular a função dirigente que o PC da URSS havia conquistado graças ao impulso de Lênin.”[3]  Trazida esta questão, para a defesa da Democracia e da República, pode-se dizer, no mínimo, que o descumprimento de uma função unitária dirigente dos partidos do campo da esquerda e progressistas é, senão uma degradação, um descompromisso histórico com a Democracia e a  República.
 
A esquerda, hoje, encontra-se num impasse para retomar a ofensiva política, que defendo deve se dar em três níveis, aliás já colocados como permanentes, no atual “duelo” desigual de versões, entre a direita, escorada na agenda da mídia oligopolizada,  e a esquerda e centro-esquerda, acuada entre as decisões de “austeridade” do Governo Federal e as acusações em abstrato (fascistas), de corrupção contra toda a comunidade partidária do PT.
 
São os seguintes os níveis da disputa: a questão da corrupção, como característica mais geral da política, dos políticos e do Estado que, no momento, atinge particularmente os partidos que estão no governo, secundariamente o sistema de partidos, como um todo, e a própria viabilidade da República Democrática, porque ela não existe sem partidos; a questão da Reforma Política, que tem como centro a questão do sistema de financiamento eleitoral e partidário, que degrada a Democracia e reforça as bancadas reacionárias e conservadoras, o que possibilita deformações como a eleição do atual Presidente da Câmara; a questão da austeridade e do financiamento do Estado, para sair da crise, (que não marcamos politicamente qualquer diferenciação do Governo Federal em relação a outras “austeridades”) e que ameaça a coerência do próprio governo da Presidenta Dilma.
 
Precisamos, assim, compor e fortalecer núcleos dirigentes nos partidos progressistas e de esquerda, a partir de uma movimentação interna, em torno de uma agenda externa, unitária. Com base nestes pontos fundamentais, entendo que devemos constituir núcleos dirigentes    - compostos por intelectuais, líderes de movimentos sociais, acadêmicos, personalidades sem partido, personalidades de partidos que tenham reconhecimento nestes meios -    para forçar a agenda unitária, de fora para dentro, nos partidos,  sob pena deles, partidos, perderem inclusive as bases sociais que ainda lhes ouvem.
 
A mera dialética dos debates internos, hoje, nos partidos do campo da esquerda, não reestabelecerá núcleos dirigentes com reconhecimento amplo, nas diversas bases sociais dos partidos e, principalmente, na cidadania “sem partido”, porque o distanciamento não ocorre por falta de empenho nem, em regra, em função da qualidade dos seus dirigentes. Ele ocorre porque, mudando a estrutura das classes no interior do próprio capitalismo, muda, não só a relação entre as classes, mas também a relação delas com os partidos e mudam igualmente, as próprias formas através das quais a ideias se movem na esfera política.
 
Estas “bases”, hoje, estão submetidas principalmente ao controle da formação das suas opiniões,  pelos oligopólios midiáticos,  que condensam a agenda conservadora neoliberal e se superpõem, como “partido novo tipo”, aos próprios partidos tradicionais do conservadorismo e da reação. Não se trata, portanto, de desautorizar as lideranças importantes, existentes nos partidos do campo progressista, mas de permitir que os partidos recebam, desta forma, um “choque” de sociedade. A pulverização ideológica e cultural do espírito democrático, hoje, não só se encontra em estágio avançado de decadência, em função destas novas formas de dominação e do “fazer político”, mas também estimula um modo de vida - inclusive nas amplas massas populares -  no qual o mercado é a referência central da vida e a política um problema que bloqueia o consumo.
 
Penso que é hora de inverter o que ocorreu em 2002. Precisamos, agora, uma Carta aos Brasileiros, que não venha do governante eleito, para poder governar. Mas uma carta da maioria da sociedade, que diga aos partidos, que vão nos governar no próximo ciclo, o novo conteúdo da Democracia e da República.

(From Carta Maior)

Tarso Genro

Tarso Genro,

Tarso Genro es gobernador del Estado de Rio Grande do Sul, Alcalde de Portoalegre durante los primeros Foros Sociales y Ministro en varios gabinetes del presidente Lula. Miembro del Comité Editorial de Insight