A austeridade pode matar-nos


Em 1962, o RCP (Royal College of Physicians) publicou um relatório sobre tabagismo e saúde no Reino Unido. Utilizando investigações realizadas por Sir Richard Doll e Sir Austin Bradford Hill, o relatório estabeleceu de modo bem conclusivo a ligação entre fumar — incluindo o tabagismo passivo — e o cancro do pulmão, outras doenças pulmonares, doenças cardíacas e doenças gastrointestinais. Este estudo provocou uma enorme sensação e recebeu uma resposta ambivalente, muitas vezes hostil, por parte dos media, dos governos e da sociedade. Em 1962, “fumar era omnipresente, aceite e firmemente estabelecido”. “[No Reino Unido] cerca de 70% dos homens e de 40% das mulheres fumavam”. Era “um mundo sufocado pelas nuvens enroladas de fumo do tabaco” — “em bares, cinemas, comboios, autocarros, nas ruas e até mesmo nos hospitais e nas escolas” (Relatório do RCP-Royal College of Physicians, Fifty years since Smoking and Health – progress, lessons and priorities for a smoke-free UK, 2012). Gradualmente, a acção governamental foi reduzindo a intensidade deste fenómeno. Por volta de 2012, “...fumar deixou de ser a norma. As nossas escolas, hospitais, bares, cinemas e transportes públicos estão sujeitos a legislação anti-fumo do tabaco. [No Reino Unido] apenas 21% da população fuma. O Governo, os media e a sociedade aceitaram genericamente a necessidade de proteger as pessoas, especialmente as crianças, de grande parte dos danos associados ao fumo do tabaco”. Ainda assim, no Reino Unido, levou-se cinquenta anos para alcançar esta expressiva redução na incidência de tabagismo. Os fumadores são, ainda, 21% da população, existem ainda em demasia, eles representam uma flagrante evidência de irracionalidade ou de adição ou de ambas e a persistência de interesses estabelecidos a favor dos produtores de tabaco e de cigarros.

A austeridade — tendo como principal objectivo a existência de um orçamento público equilibrado, a redução das despesas e o aumento da tributação mesmo no meio de uma grande recessão económica — também tem sido a norma desde há muito tempo, muitíssimo mesmo, e está ainda consagrada  nas políticas e tratados da  União Europeia e da  União Económica e Monetária (UEM), do FMI e do BCE. Todos nós já sabemos, pelo menos desde 1936 (com a publicação da Teoria Geral de Keynes), na verdade desde 1933-35 (as datas das antecipações feitas por Michal Kalecki das proposições keynesianas, ver Robinson (1976) e Nuti (2004)), que a  austeridade  pode  causar  desemprego  involuntário  e  desnecessário  assim  como  perdas irreversíveis de rendimento e de consumo.

No nosso tempo e com a nossa idade a austeridade é ainda mais incompreensível do que o acto de fumar, se não fosse o medo irracional da inflação no meio de uma recessão, a dependência generalizada de ideologias hiperliberais e os interesses daqueles que pensam que beneficiam com o desemprego dos trabalhadores, porque o desemprego os obriga a manterem-se “no seu lugar”. Mas a austeridade é ainda pior, pois está hoje muito mais generalizada do que o acto de fumar, está em ascensão e é oficialmente apoiada, mais do que no passado, pelas nossas autoridades nacionais e internacionais, contrariamente ao acto de fumar que está em constante declínio e, não menos importante, por causa de políticas de saúde progressistas em todo  o mundo.

O pleno emprego, uma viabilidade

Em 1943, Michal Kalecki podia escrever que “uma sólida maioria de economistas é agora da opinião que, mesmo num sistema capitalista, o pleno emprego pode ser estabelecido por um governo através dum programa de despesas públicas, desde que existam fábricas adequadas para empregar toda a força de trabalho existente e desde que se verifique o fornecimento adequado de matérias-primas do exterior, matérias-primas que podem ser obtidas em troca de exportações”. Contando, é claro, que o programa de despesas públicas seja “financiado por meio de empréstimos e não através de impostos”. Kalecki tratou igualmente o caso de países altamente endividados, que também poderiam pagar e atrair empréstimos para financiar as despesas públicas, desde que os juros fossem pagos pela tributação sobre o capital.

A oposição a uma política de pleno emprego (ou seja, alto e estável nível de emprego) seria uma questão política: “i) por princípio, oposição a despesas públicas com base num défice orçamental; ii) oposição ao facto de estas despesas serem dirigidas quer  para  investimento público — o que pode prenunciar a  intromissão do Estado em novas esferas da actividade económica — quer para subsidiar o consumo de massa; iii) oposição à manutenção do pleno emprego e não apenas à prevenção de recessões profundas e prolongadas”. Tais objecções diminuem durante os períodos de recessão e são reavivadas durante as fases de crescimento, gerando-se assim o que Kalecki chamou de “ciclo político” e com ele um nível de emprego médio geralmente mais baixo do que aquele que poderia existir de uma outra forma.
Mas a viabilidade de políticas de pleno emprego tipo Kalecki/Keynes rapidamente deixaram de ser apreciadas ou apoiadas por uma “sólida maioria dos economistas”. A eficácia de políticas orçamentais expansionistas foi contestada numa escalada de argumentos.

Do défice orçamental à consolidação orçamental expansionista

Em primeiro lugar, foi argumentado que as despesas públicas “substituiriam” o investimento privado (o chamado efeito crowding out ou efeito de evicção). Esta ideia negligencia a possibilidade de o investimento  privado, ao contrário, beneficiar de efeitos de crowding in, decorrentes de despesa pública adicional, devido à activação do efeito de acelerador provocado por uma maior procura inicial, [devido ao facto de o investimento privado se confrontar então, pelo lado da procura, com uma maior procura inicial]. Ao contrário dos defensores do efeito crowding out, Dennis Robertson (numa conferência proferida em Princeton, em 1953) argumentou que pelo menos alguma da poupança adicional resultante do rendimento criado a partir do aumento da despesa pública não representaria uma fuga ao sistema, uma leakage, mas sim um poder de compra canalizado para investimentos  adicionais, sendo  isto chamado de “efeito Kalecki”.

Em segundo, foi invocada a equivalência ricardiana, timidamente apresentada por David Ricardo, no início do século XIX, e re-descoberta por Robert J. Barro, em 1974. Quando as despesas públicas aumentam e este aumento é financiado por empréstimos, os agentes económicos descontam o pagamento futuro de impostos mais elevados que antecipam terem de pagar devido a um serviço da dívida mais elevado. O efeito é o mesmo que existiria se as despesas fossem financiadas diretamente por um imposto imediato mais elevado: um menor consumo privado como compensação por uma maior despesa governamental. (O leitor é convidado a realizar uma experiência ao nível do raciocínio: como é que responde a um estímulo orçamental do governo? Eu certamente não).

Em terceiro, no início da década de 1970, a teoria das chamadas expectativas racionais foi introduzida por Robert Lucas, entre outros, e esta é uma designação perfeitamente tendenciosa e errada.  Estas  deveriam  ter  sido  chamadas  de  expectativas  bem-sucedidas,  por  definição.  A utilização eficiente de toda a informação disponível, por todos os agentes económicos, faz com que os mercados sejam eficientes. Ninguém tem de ficar surpreendido. Os multiplicadores, em seguida, poderiam então ser menores do que a unidade.

Em quarto, nas décadas de 1990 e 2000, uma série de estudos empíricos propôs a ideia de “contracção orçamental expansionista”. Os seus autores argumentaram que a eliminação dos défices orçamentais, através de impostos mais elevados ou da diminuição das despesas públicas, pode ser e geralmente é sempre expansionista: consulte-se Giavazzi e Pagano (1990, 1996); Alesina e Perotti (1997); Alesina e Ardagna (2010). Blanchard (1990, então Professor no MIT, antes de se juntar ao FMI como economista-chefe em 2008) explicou como isto é devido à promoção do crescimento do sector privado, pelas razões já mencionadas acima: a equivalência ricardiana, o aumento da confiança, um impacto favorável sobre as expectativas, a diminuição dos custos dos empréstimos, uma divisa mais fraca. Isso manter-se-ia mesmo para o caso de uma “extrema” contracção orçamental ou consolidação.
 

Crescimento em Tempo de Dívida

Mas o ponto culminante da tese da consolidação orçamental expansionista, defendida pelos chamados “austerianos” — “os defensores da austeridade orçamental, dos fortes cortes e imediatos nas despesas públicas” (definição de Krugman) — é um artigo dos economistas de Harvard, Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, cujo título é “Crescimento em Tempo de Dívida” (2010). Com base num novo conjunto de dados de quarenta e quatro países abrangendo cerca de duzentos anos, incorporando “mais de 3.700 observações anuais que cobrem uma vasta gama de sistemas políticos, instituições, sistemas e acordos cambiais e  múltiplas  circunstâncias históricas”, Reinhart e Rogoff avançam que “a relação entre a dívida pública e o crescimento do PIB real é fraca para valores do rácio da dívida pública/PIB situados abaixo de um limiar de 90% do PIB. Acima do limiar dos 90%, as taxas de crescimento medianas caiem 1 ponto percentual e o crescimento médio cai consideravelmente mais”.

A noção de que a dívida pública superior a 90% do PIB tem um efeito negativo sobre o crescimento económico tornou-se um argumento decisivo na defesa da aplicação das políticas de austeridade, argumento que tem sido apresentado pelos altos dirigentes nacionais e internacionais, desde o ex-vice-candidato presidencial Paul Ryan, o presidente da comissão de orçamento do Congresso dos EUA, até ao Comissário europeu Olli Rehn, e pelos comentadores de referência. Assim, a proposição de Keynes de que “as situações de expansão e não as de recessão são o momento certo para aplicar políticas de austeridade” foi falsificada e a austeridade tornou-se uma boa política para todas as estações em países altamente endividados.


A maré está a virar

A proposição “da consolidação orçamental expansionista” foi imediatamente sujeita a muitas críticas e foi sendo gradualmente desacreditada quer nas suas bases teóricas quer através de estudos empíricos.
Já em Novembro de 2008, o Director-geral do FMI, Dominique Strauss-Kahn, tomou a iniciativa de se aplicar um considerável estímulo orçamental global na ordem de 2% do PIB mundial. Numa entrevista publicada em  IMF Survey Online, em 29 de Dezembro de 2008, Olivier Blanchard — então economista-chefe do FMI — e Carlo Cottarelli, chefe do Departamento de Assuntos Fiscais do FMI, chamavam  a atenção  para a recapitalização dos bancos (demorada) e para a ineficácia da expansão monetária (ineficaz a baixas taxas de juros) e defendiam então um forte estímulo orçamental: “Em tempos normais, o FMI, de facto, recomendaria a muitos países que reduzissem o seu défice orçamental e a sua dívida pública.

Mas estes não são tempos normais e a dimensão dos riscos é hoje muito diferente... Se não há aplicação de estímulos orçamentais, então a procura pode continuar a cair. E com isso, podemos passar a ver alguns dos ciclos viciosos que vimos outrora, no passado: a armadilha da deflação e da liquidez, as expectativas a tornarem-se cada vez mais pessimistas e, por conseguinte, a gerar- se uma recessão profunda que se agrava cada vez mais. Se, em vez disso, um estímulo orçamental for aplicado, e se se mostrar que foi desnecessário, o risco é o de a economia recuperar muito rapidamente. Certamente, esse risco é bem mais fácil de controlar do que o risco de aprofundamento de uma recessão”. O FMI aumentou o volume dos seus empréstimos, aumentou os seus recursos próprios e atenuou um pouco a sua própria condicionalidade, mas o seu compromisso foi de muito curta duração e foi afinal intermitente. O BCE, sob a direcção de Jean-Claude Trichet, desde muito cedo que passou a defender uma estratégia de saída rápida da crise que passasse pela expansão monetária e os estímulos orçamentais.

Em Outubro de 2010, o capítulo 3 do World Economic Outlook, FMI, analisa “os efeitos da consolidação orçamental — subida dos impostos e cortes nas despesas públicas — sobre a actividade económica”. Os seus autores chegam à conclusão de que a consolidação orçamental normalmente reduz a produção e o PIB e gera desemprego a curto prazo, especialmente se a consolidação ocorrer simultaneamente em muitos países e se a política monetária não estiver em condições de a compensar, de a neutralizar nos seus efeitos negativos. Só no longo prazo é que os cortes na taxa de juro podem, acompanhados por uma queda no valor da divisa nacional e por um aumento das exportações líquidas, geralmente “amaciar” mas não compensar o impacto contraccionista.

Baker (2010) critica Alesina e outros (1995, 2006) por utilizarem défices ciclicamente ajustados enquanto a política de ajustamento dos défices leva a que os próprios ajustamentos se façam de uma maneira keynesiana. Ele também critica Broadbent e Daly (2010) pelo facto de os casos conhecidos de consolidação orçamental expansionista terem ocorrido  em  situações  de muito pequenas variações do hiato do produto relativamente às grandes variações que ocorrem na crise actual.

O Fiscal Monitor do FMI, de Setembro de 2011, alertou para o facto de “uma consolidação demasiado rápida durante 2012 poder agravar os riscos de recessão”: “mais endurecimento nas políticas de austeridade durante uma crise poderia agravar em vez de aliviar as tensões do mercado através do seu impacto negativo sobre o crescimento”.
Em 2012, Carlo Cottarelli salientou a atitude “esquizofrénica” dos investidores em matéria de consolidação orçamental: o seu entusiasmo inicial é a seguir substituído pelo medo de uma consequente recessão, de tal modo que os governos são “condenados se a fizerem e condenados se não a fizerem”.

O World Economic Outlook do FMI (de Outubro de 2012) contém uma caixa extensa com um texto assinado pelo seu economista-chefe, Olivier Blanchard, e por Daniel Leigh, onde estes dois economistas argumentam que os multiplicadores orçamentais foram subestimados nas previsões do FMI e nos documentos sobre as políticas, publicados pela OCDE e pela Comissão Europeia. Estudos económicos recentes do FMI sugerem que os multiplicadores orçamentais estão situados na faixa de 0,9 a 1,7, em vez de estarem de acordo com a hipótese seguida até aí em torno de 0,5. Por outras palavras, o custo da  consolidação  orçamental  tem  sido grosseiramente subestimado. Em Janeiro de 2013, Blanchard e Leigh apresentaram um documento de trabalho mais desenvolvido sobre os seus argumentos na American Economic Association Annual Conference. No entanto, de acordo com os mesmos autores, “é necessária ainda mais investigação”.

Mas mais investigação já estava disponível no próprio FMI. Guajardo, Leigh e Pescatori (2011) investigaram “os efeitos de curto prazo da consolidação orçamental sobre a actividade económica nas economias da OCDE”. “Nós examinamos o registo histórico, incluindo documentos com os discursos de apresentação do orçamento e os documentos do FMI, para identificar alterações na política orçamental motivadas por um desejo de reduzir o défice orçamental e não de responder às condições económicas em perspectiva. Usando este novo conjunto de dados, as nossas estimativas sugerem que a consolidação orçamental tem efeitos de contracção sobre a procura interna privada e sobre o PIB. Em contraste, as estimativas baseadas em medidas convencionais da orientação da política orçamental utilizadas na literatura sustentam a hipótese de contracções orçamentais expansionistas, mas parecem estar enviesadas e exageram os efeitos expansionistas”.

E Batini-Callegari-Melina (2012) i) desacreditam a necessidade de reduzir as despesas públicas de natureza social, especialmente em tempos de recessão, uma vez que  os multiplicadores podem ser até dez vezes maiores que os multiplicadores orçamentais; ii) encontram valores absolutos para os multiplicadores na ordem de 2,5, em vez do intervalo 0,9- 1,7 como no World Economic Outlook do FMI (2012); iii) observam que a consolidação agressiva é muito mais cara em termos de PIB do que a consolidação gradual. Em Maio de 2013, Jeffrey Frankel criticou vários artigos publicados por Alesina e outros co-autores (Giavazzi, Ardagna e Favero), onde todos alegavam que a consolidação orçamental não é contraccionista em recessão. As objecções de Frankel são baseadas num trabalho recente de Perroti, originalmente co-autor de Alesina, onde critica a metodologia utilizada no tratamento dos dados e sublinha que algumas das consolidações orçamentais utilizadas por Alesina et al. foram anunciadas pelos governos, mas nunca implementadas. Assim, Frankel conclui que Alesina “não tem estado a receber o seu verdadeiro quinhão no abuso” (Eurointelligence.com, 22 de Maio de 2013).

Ao mesmo tempo, Alesina e Giavazzi amaciaram muito consideravelmente a sua posição original. Em Maio de 2013, de facto, recomendaram ao Governo italiano que ultrapassasse o limite do défice de 3% durante dois anos — porque “aqueles 3% não devem ser vistos como um tabu” — oferecendo a Comissão Europeia imediatamente em troca a redução dos impostos sobre os rendimentos do trabalho e um planeamento gradual e permanente de cortes nas despesas públicas nos três anos seguintes. A Comissão Europeia não daria por concluído o Procedimento por Défice Excessivo da Itália no final de Maio, mas estaria disposta a aprovar um tal plano e a acompanhar a sua concretização. Ao mesmo tempo, dever-se-ia continuar com o  crédito às famílias e às empresas no respeito da condicionalidade para a recapitalização dos bancos e de acordo com as regras do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE).


O não-existente limite de 90%

A noção de Reinhart e Rogoff sobre o limite crítico de 90% do rácio da dívida pública/PIB foi imediatamente criticada por Irons e Bivens (2010), que argumentaram que o nexo de causalidade pode ser o inverso do indicado por Reinhert e Rogoff. Estes autores partem de rácios da dívida pública/PIB para daí deduzirem que estes ao serem muito altos geram baixas taxas de crescimento enquanto Irons e Bivens (2010) argumentam que um crescimento económico mais lento pode levar a rácios de dívida pública/PIB mais elevados. Além disso, “não há nenhuma razão convincente para acreditar... que a dívida bruta de cerca de 90% conduzirá necessariamente a um mais lento crescimento económico. Na verdade, a maior ameaça para o crescimento económico é a inacção política que é alimentada pelo medo de se criar uma situação de défice”.

A machadada final sobre o dogma de Reinhart e Rogoff quanto ao rácio da dívida pública/PIB de 90% veio de Herndon, Ash e Pollin (2013), que replicaram a análise feita por Reinhart e Rogoff de 2010 usando os dados originais. Para além de um erro de codificação, que terá dado origem apenas a uma pequena contribuição para as suas conclusões, Reinhart e Rogoff selectivamente excluíram dados disponíveis para várias nações Aliadas — Canadá, Nova Zelândia e Austrália — que emergiram da Segunda Guerra Mundial com rácios da dívida pública/PIB elevados mas que ainda assim tiveram  um crescimento económico sólido. E as estatísticas foram todas elas ponderadas de igual modo, independentemente do número de observações por país com rácios acima dos 90% e da taxa de crescimento obtida [estranho que assim sejam ponderadas e sobretudo com economistas com este renome] . Herndon et al. (2013) concluíram que “...quando devidamente calculada, a taxa média de crescimento do PIB real para países sujeitos a um rácio da dívida pública/PIB superior a 90% é realmente de 2,2%, não de 0,1% como foi publicado por Reinhart e Rogoff”. “A taxa média de crescimento do PIB quando o rácio da dívida pública/PIB é superior a 90% não é dramaticamente diferente de situações em que o rácio da dívida pública/PIB é mais baixo”.

Reinhart e Rogoff (2013) admitiram alguns dos seus erros e omissões, mas argumentaram que nada disto leva a alterar a sua conclusão final sobre a austeridade: o endividamento excessivo deprime o crescimento. Mas dois estudos subsequentes reclamam que, ao contrário, o crescimento lento é que parece estar a provocar um rácio da dívida pública/PIB mais elevado (como Irons e Bivens (2010) já tinham discutido). Dube (2013) considera que o crescimento tende a ser mais lento nos cinco anos anteriores à altura em que os países apresentaram níveis elevados de dívida.

Nos cinco anos após terem tido níveis de endividamento elevado, nenhuma diferença notável se notou quanto ao crescimento, seguramente não se notou ao nível do rácio da dívida pública/PIB de 90%, que é o valor de referência para Reinhart e Rogoff, ou seja, o valor que é para estes dois autores considerado o limiar da não sustentabilidade. Kimball e Wang (2013) apresentaram resultados semelhantes. Este ponto é aceite por Reinhart-Rogoff (2013): “a questão de fronteira para a investigação é a questão da causalidade”.


Mas persistem as políticas suicidas

Um tão incrível e cumulativo descrédito final sobre a alegada abordagem da política de contracção orçamental expansionista (pelo menos severa é a crítica) e o limite associado de 90% para a sustentabilidade da dívida parece não ter tido grande impacto nas políticas actuais, especialmente nas políticas europeias lideradas pela Alemanha, com a União Europeia e, especialmente, os países da UEM a estarem amarrados  ao “pacto suicida” (Joseph  Stiglitz), chamado Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC).

O mais recente tratado orçamental da União Europeia ou TSCG — Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na UEM — exigiu uma regra de equilíbrio orçamental a ser inserida nas Constituições nacionais dos Estados-Membros, que ficam sujeitos à regra de um défice estrutural máximo de 0,5% do PIB. Existem sanções e ajustamentos automáticos em caso de não observância, sujeita a verificação e aos pareceres do Tribunal de Justiça Europeu. Os programas de assistência financeira sob o MEE — que entrou em vigor em Março de 2012 — desde Março de 2013 que estão sujeitos à condição de ratificação prévia do TSGC.

A partir de 2015 os países que excedam o tecto instituído de 60% como valor  de referência do rácio da dívida pública/PIB, exigido tanto pelo Tratado de Maastricht como pelo PEC, são forçados a reduzir anualmente a dívida excessiva em 1/20 da actual diferença relativamente ao valor de referência até que este mesmo valor de 60% seja alcançado — o que, para um país  como  a Itália, com um rácio  superior a 130%,  envolve  a necessidade de um
excedente orçamental de mais de 3,5% por ano durante 20 anos1.

O relatório do FMI (2013) criticou o trabalho da Troika (CE, BCE, FMI) sobre a crise grega ao longo destes últimos quatro anos, mas concluiu que tudo o que foi feito era o melhor que se poderia ter feito e que as suas políticas não seriam hoje diferentes se verificadas as mesmas circunstâncias. Em Julho de 2013, numa conferência de economistas alemães, defendeu- se que um rácio da dívida pública/PIB de 90% — o condenado mas duvidoso limiar de Reinhart e Rogoff — deveria provocar imediatamente um resgate e a reestruturação automática da dívida.


A austeridade é como o fumador compulsivo

Em conclusão, a visão de Keynes e Kalecky sobre a dinâmica capitalista está viva e repleta de saúde. O próprio FMI tem estado a reavivá-la e a fornecer apoio teórico e empírico para isso ao realçar o elevado custo do processo de consolidação orçamental, mas ao mesmo tempo tem continuado oficialmente a recomendar e a impor a própria consolidação orçamental. Enquanto fornece um caso exemplar para um estímulo orçamental, a investigação conduzida pelo FMI está a ser utilizada, até mesmo pelos seus funcionários mais esclarecidos, para se recomendar uma consolidação orçamental gradual e não abrupta, em vez de estímulos orçamentais que deveriam ser os necessários e os adequados. Os obstáculos às políticas de pleno emprego são ainda hoje  de natureza política (resistência a um imposto sobre o capital para excepcionalmente diminuir os encargos de uma dívida pública elevada, além de se estar a querer manter a “disciplina” dos trabalhadores através do elevado nível de desemprego). O tempo para um devido reavivar do corpo teórico de Kalecki (e de Keynes) é agora chegado, mas até que isso, na verdade, ocorra estamos todos condenados a sofrer com o empobrecimento e o desemprego, sendo tudo isto causado pela mais profunda crise económica feita pelo homem ao longo de toda a história da humanidade.

1 Com efeito, 130% - 60% é igual a 70%. Dividindo 70% por vinte anos dará 3,5% ao ano, ou seja, a Itália terá de ter anualmente e durante vinte anos um excedente orçamental global de 3,5% pelo menos. Veja-se igualmente o artigo de Creel citado por nós no texto da sua resposta à nossa pergunta [N.T.].


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D. Mario Nuti

Professor Emeritus, Sapienza University of Rome. Member of the Editorial Board of INSIGHT - dmarionuti@gmail.com.
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